Notícias

A inconstitucionalidade de lei estadual que impõe alíquota de ICMS superior à geral

Ditava o Artigo 23 da Constituição Federal(Emenda Constitucional n. 1, de 1969): Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sôbre: (…)

II – operações relativas à circulação de mercadorias realizadas por produtores, industriais e comerciantes, imposto que não será cumulativo e do qual se abaterá, nos termos do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado. A isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implicará crédito de imposto para abatimento daquele incidente nas operações seguintes. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1983). (…)

§ 5º – A alíquota do imposto a que se refere o item II será uniforme para todas as mercadorias nas operações internas e interestaduais, bem como nas interestaduais realizadas com consumidor final; o Senado Federal, mediante resolução tomada por iniciativa do Presidente da República, fixará as alíquotas máximas para cada uma dessas operações e para as de exportação. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1983).”

Mas na Constituição Federal de 1988, o atual ICMS é um tributo de natureza fiscal e extrafiscal, concomitantemente, porque constitui importante fonte de receita aos Estados e ao Distrito Federal, ao mesmo tempo em que tem a função de propiciar a facilitação da circulação de mercadorias essenciais. É o que determina o artigo 155, §2º, inciso III, da Constituição Federal, nos seguintes termos:

“Artigo 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) (…)

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) (…)

§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) (…)

III – poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços;”

Tendo em vista a relevância, a não observância do princípio da seletividade dos produtos e serviços é matéria de exame no Recurso Extraordinário 714.139/SC.

Mister que se diga que, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 634.457/RJ, de 5 de agosto de 2014, decidiu no sentido de reconhecer que a capacidade do contribuinte impõe a observância do princípio da seletividade como medida obrigatória, de forma a evitar a incidência de alíquotas exorbitantes sobre bens e serviços essenciais.

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal entendeu que os governos estaduais não podem cobrar alíquotas de ICMS sobre energia elétrica muito superiores aos percentuais estipulados para produtos considerados supérfluos.

No caso específico em análise, no Rio de Janeiro, estava sendo cobrada a alíquota de 25% de imposto. A média para outras mercadorias correspondia a 18%. Em Santa Catarina é prevista alíquota de 25% para energia e telecomunicações no Estado. No Estado, a média é de dezessete por cento para outros serviços e produtos.

O princípio da seletividade do imposto visa assegurar a aplicação de moderna técnica fiscal, que permita a utilização de alíquotas inversamente proporcionais à essencialidade das mercadorias e serviços. Lembrando a lição de Maria Lúcia Américo dos Reis e ainda José Cassiano Borges(O ICMS ao alcance de todos, 1991, pág. 57), as mercadorias e serviços considerados supérfluos poderão ser mais onerados pela tributação do que os essenciais ao atendimento das necessidades básicas da população.

Sabe-se que serviços essenciais – como de energia e telecomunicações – não poderiam ter alíquotas superiores a de produtos considerados supérfluos, como cigarros, cosméticos e perfumes.

Na lição de Sacha Calmon Navarro Coelho(Comentários à Constituição de 1988 – Sistema tributário, 1990, pág. 238), quando discutiu sobre as alíquotas seletivas, a seletividade no ICMS é facultativa. No IPI é obrigatória. Disse que no ICMS, a seletividade não poderá ser nem será muito ampla.

Assim para Sacha Calmon Navarro Coelho, o ICMS é diferente do IPI. Neste a seletividade está intimamente ligada ao processo industrial e também às necessidades do consumo. No ICMS, a seletividade é relativa e olha para a população em primeiro lugar.

No IPI a seletividade está intimamente ligada ao processo individual e também as necessidades do consumo.

Realmente o Estado Membro não poderia, segundo o princípio da seletividade, estabelecer alíquotas majoradas para produtos considerados essenciais, como energia elétrica e telecomunicações.

Conforme leciona Hugo de Brito Machado: “dizer-se que um imposto é seletivo é apenas dizer que ele incide de forma diferente sobre os objetos tributados. A razão dessa incidência diferenciada é o que denominamos critério da seletividade”. O mesmo Hugo de Brito afirma que “o caráter facultativo diz respeito apenas à seletividade, e não ao critério desta, se adotada”. E mais, “na verdade o ICMS poderá ser seletivo. Se o for, porém, essa seletividade deverá ocorrer de acordo com a essencialidade das mercadorias e serviços, e não de acordo com critérios outros, principalmente se inteiramente contrários ao preconizado pela Constituição. Em outros termos, a Constituição facultou aos Estados a criação de um imposto proporcional, que representaria ônus de percentual idêntico para todos os produtos e serviços por ele alcançados, ou a criação desse mesmo imposto com caráter seletivo, opção que, se adotada, deverá guiar-se obrigatoriamente pela essencialidade dos produtos e serviços tributados. A seletividade é facultativa. O critério da seletividade é obrigatório” (Hugo de Brito Machado, Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988, 4ª edição, Dialética, São Paulo, 2001, p. 113).

Leve-se em conta que o ICMS, imposto estadual, é instrumento de ordenação político-econômico, onde se estimula a prática de operações ou prestações havidas por úteis ou convenientes ao País. É um instrumento extrafiscal de modo que deve ser direcionado de forma inversamente proporcional à essencialidade do produto ou da mercadoria.

Com o devido respeito, a expressão “poderá” equivale a um “deverá”. A seletividade do ICMS é obrigatória, como o é com relação ao IPI. O ICMS deverá ser seletivo em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços.

Ora, a energia elétrica é sempre essencial, independentemente da quantidade consumida ou ainda ao fato de que ela é utilizada em residências, em unidades comerciais ou industriais. Isso porque ela é essencial à sociedade moderna de forma que torná-la Veja-se o caso de ICMS, principalmente em áreas rurais. A essencialidade refere-se à adequação do produto á vida do maior número de habitantes do País.

Foi o que disse Hugo de Brito Machado (A tributação da energia elétrica e a seletividade do ICMS, 2008), ao alegar que, “sem energia elétrica não há vendas, prestação de serviços ou produção. Não se vive apenas, se sobrevive, e mal. Enfim, no momento histórico atual, não se pode e sã consciência se questionar a essencialidade da energia elétrica”

Deste modo, a alíquota de 25% discutida fere a previsão de essencialidade prevista na Constituição.

Recentemente, segundo nos informou Sérgio Rodas( STF forma maioria para proibir alíquota de ICMS maior para energia e telefonia, in Consultor Jurídico, 22 de novembro de 2021) lei estadual que impõe alíquota de ICMS para os serviços de energia elétrica e telecomunicações superior à geral é inconstitucional, por violar os princípios da seletividade e da essencialidade.

Esse foi o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, por sete votos a três, ao formar maioria para declarar a inconstitucionalidade do artigo 19, inciso II, alíneas “a” e “c”, da Lei estadual 10.297/1996 de Santa Catarina. A norma estabeleceu alíquota de ICMS de 25% para os serviços de energia elétrica e telecomunicação, superior aos 17% aplicáveis à maioria das atividades econômicas. O julgamento, que ocorre no Plenário virtual, será encerrado às 23h59 desta segunda-feira (22/11).

Com isso, a Corte aprovou o Tema 745 de repercussão geral, com a seguinte tese: “Adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao ICMS, discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços”.

Destaco aqui, naquele julgamento, no RE 714.139, o voto vencedor do ministro Marco Aurélio que destacou a indispensabilidade dos setores de energia e telecomunicações. “O acréscimo na tributação não gera realocação dos recursos, porquanto insubstituíveis os itens. Daí a necessária harmonia com o desenho constitucional, presente a fragilidade do contribuinte frente à elevação da carga tributária. Conforme fiz ver no julgamento do recurso extraordinário 1.043.313, Pleno, relator ministro Dias Toffoli, ‘a corda não pode arrebentar do lado mais fraco'”, disse.

Segundo o ministro, o desvirtuamento da técnica da seletividade, considerada a maior onerosidade sobre bens de primeira necessidade, não se compatibiliza com os fundamentos e objetivos contidos no texto constitucional, nos artigos 1º e 3º, seja sob o ângulo da dignidade da pessoa humana, seja sob a perspectiva do desenvolvimento nacional.

“Levando em conta a calibragem das alíquotas instituídas pela norma local, impõe-se o reenquadramento jurisdicional da imposição tributária sobre a energia elétrica e os serviços de telecomunicação, fazendo incidir a alíquota geral, de 17%. Não se trata de anômala atuação legislativa do Judiciário. Ao contrário, o que se tem é glosa do excesso e, consequentemente, a recondução da carga tributária ao padrão geral, observadas as balizas fixadas pelo legislador comum”, completou.

Para ele, a decisão assegura os direitos e garantias do contribuinte e preserva a moldura desenhada pelo constituinte de 1988. “É hora de perceber que não há espaço para a sanha arrecadatória dos entes federados no que se sobreponha aos limites previstos no ditame maior”. O objetivo da decisão, afirmou o ministro, é buscar justiça fiscal.

Assim, Marco Aurélio deu parcial provimento ao recurso para reformar o acórdão recorrido, deferir a ordem e reconhecer o direito da impetrante ao recolhimento do ICMS incidente sobre a energia elétrica e serviços de telecomunicação, considerada a alíquota geral de 17%, conforme previsto na Lei estadual 10.297/1996.

O voto do relator foi seguido pelos ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Edson Fachin, Rosa Weber e Luiz Fux.

*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

Autor/Veículo: O Estado de S.Paulo*
Compartilhe: