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Alta da gasolina pode incentivar eletrificação da frota de automóveis

O impacto da guerra da Ucrânia nos preços das matérias-primas fez o barril do petróleo se aproximar de US$ 140 na semana passada, o que abriu uma janela para a eletrificação da frota no Brasil, além de trazer de novo à pauta a retomada nos investimentos no programa de etanol, uma experiência considerada modelo no mundo.

Para especialistas, um caminho para popularizar os elétricos serão os modelos híbridos, que funcionem tanto com baterias elétricas como com combustível, no caso o etanol. Afinal, o Brasil já tem uma indústria bem consolidada de biocombustíveis.

vice-presidente de Veículos Leves da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), Thiago Sugahara, destaca que muitas empresas já vinham reportando, nos últimos meses, aumento na procura por carros eletrificados:

— Com o aumento do preço da gasolina, os consumidores passam a olhar alternativas que podem ajudar a reduzir o custo do combustível no dia-a-dia.

Os elétricos, no entanto, ainda enfrentam duas barreiras: o preço elevado dos veículos e a escassez de pontos de carregamento. Atualmente, há cerca de 750 pontos, e um estudo do Boston Consulting Group (BCG) para a Anfavea, associação das montadoras, estima que o Brasil vai precisar de 150 mil pontos de carregamento nos próximos anos, um investimento de R$ 14 bilhões.

Nos preços, a diferença entre modelos elétricos e aqueles a combustão é imensa. Enquanto um carro de entrada flex custa cerca de R$ 65 mil, o modelo elétrico compacto puro-sangue (ou seja, que não é híbrido) mais barato disponível no Brasil, o JAC EJSI, sai por R$ 165 mil. Na categoria híbrido, o menor preço é o do Kia Stonic, de R$ 146,9 mil.

‘Eu parecia um ET’
Tiago Alves, CEO em uma multinacional de espaços de coworking, já usa carros elétricos há sete anos. Ele conta que o gasto com o combustível equivale a um décimo do de um motor a combustão. Atualmente, ele tem o modelo Audi e-Tron, 100% elétrico. Enquanto sua mulher, que tem um Audi a combustão, gasta R$ 1 por quilômetro rodado, o gasto dele é de apenas R$ 0,10.

— Estou sambando na cabeça de todo mundo com a gasolina a R$ 8. Eu brinco com meus amigos, porque eu não sinto mais isso — conta Alves, que adotou os elétricos por preocupação com o impacto com o meio ambiente e, claro, com os custos.

Ele reconhece que os elétricos ainda são caros, mas garante que, a longo prazo, o gasto compensa. E lembra que a oferta de carregadores públicos vem melhorando.

Alves conta que, quando comprou seu primeiro elétrico, os amigos estranharam. Hoje, vários já aderiram.

— No começo, eu parecia um ET. Explicava para as pessoas como carrega, quanto dura a bateria, como você faz se ficar sem energia — diz Alves, que carrega seu carro, em média, a cada três dias.

Marcus Ayres, sócio-diretor da consultoria Roland Berger, ressalta que o consumidor, em geral, não leva em consideração o chamado custo total do carro, que inclui todas as despesas com o veículo, de impostos a combustíveis. O que pesa, diz, é o valor a ser pago na aquisição. Mas ele avalia que, com o salto nos preços dos combustíveis e a desvalorização do real, isso pode mudar:

— Esse cenário começa a deixar mais claro para o consumidor o benefício do carro eletrificado.

Ayres avalia que a demanda por elétricos deve crescer à medida que o custo total do veículo ficar mais próximo ao do tradicional, que é a tendência no médio e longo prazos.

Flávia Spadafora, sócia da área líder do setor automotivo da KPGM, destaca que os veículos elétricos podem ter uma curva crescente de adesão. A ponte para se chegar a um público mais amplo devem ser os modelos híbridos:

— O mercado brasileiro traz essa característica do biocombustível, da possibilidade do carro híbrido como uma etapa intermediária e necessária para que a gente consiga no meio tempo orquestrar essa infraestrutura que se faz necessária.

Na Stellantis, que reúne marcas como Fiat, Peugeot e Citroën, há a preocupação de garantir que a classe média tenha acesso aos carros elétricos. E a empresa vê no etanol um caminho para isso.

— A adaptação da tecnologia do etanol com a eletrificação é mais amigável ao meio ambiente e garante mais acessibilidade aos produtos — disse o presidente da Stellantis para a América Latina, Antonio Filosa, na semana passada.

O especialista da Roland Berger destaca ainda que a volatilidade dos preços do petróleo “é um aviso” para os legisladores, empresas e consumidores, de que é preciso investir em diferentes fontes de mobilidade. No Brasil, diz, o etanol deve ganhar força:

— O Brasil tem uma frota flex, e o país é o líder dessa tecnologia no mundo. O setor de etanol no Brasil está bastante fragilizado, mas está reconstruindo sua capacidade de produção, além de ser, historicamente, a nossa principal matriz verde na mobilidade.

Governo na contramão
Especialistas lembram que aumentar a produção de etanol teria um custo menor, neste primeiro momento, do que eletrificar 100% da frota brasileira. Mais de 95% dos veículos produzidos no país são flex, há infraestrutura de abastecimento e áreas para aumentar a lavoura de cana-de-açúcar.

— O país tem potencial para elevar a área de cultivo de cana sem causar desmatamento. Temos 200 milhões de hectares degradados, e nossa área plantada de cana hoje é de 10 milhões de hectares, o equivalente a 1,2% do total — diz Suani Coelho, coordenadora do grupo de pesquisa em Bioenergia do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP.

Ela ressalta que, com a melhora da produtividade da cana, é possível aumentar a produção de etanol, que na última safra passou de 30 bilhões de litros. Suani lembra ainda que, em 2017, o governo federal criou o RenovaBio. Este estabeleceu metas de descarbonização, incentivando o aumento da produção de biocombustíveis na matriz energética.

— Com a pandemia e a queda na procura dos combustíveis, o governo reduziu à metade as metas do RenovaBio. O país tem políticas adequadas para biocombustíveis, mas prefere decisões imediatistas, como reduzir o imposto do diesel e da gasolina — diz Suani.

Para Maurício Canêdo, professor da FGV Energia e da Uerj, ao propor subsidiar a gasolina, o governo vai na contramão do movimento global que busca novas fontes de energia mais limpas:

— É claro que não se estala os dedos e cresce a produção de etanol. Mas, ao optar pelo subsídio à gasolina e ao diesel para reduzir preço, estamos na direção contrária do mundo.

Etanol sem investimento
O setor sucroalcooleiro sofreu vários reveses nos últimos anos, e o investimento caiu. O descobrimento do pré-sal, em 2007, tirou o Pró-Álcool do radar do governo. Depois veio a crise global de 2008, que secou a oferta de crédito para novos projetos. E a política de contenção do preço dos combustíveis no governo Dilma Rousseff desanimou o setor.

— Não vemos atualmente grandes investimentos em usinas de etanol — diz Guilherme Belloti, gerente de consultoria do Agro Itaú BB, lembrando que, da safra de cana, 55% têm sido destinados à produção de álcool, e 45%, à de açúcar.

Paulo Feldmann, professor de Economia Brasileira da USP, defende que o governo, por meio do BNDES, crie linhas de crédito para aumentar o cultivo da cana. Com isso, cresceria a oferta de álcool e o preço do etanol não precisaria acompanhar o da gasolina, como acontece hoje. O álcool segue a gasolina por um problema de demanda. Se o etanol ficar muito mais barato, o consumidor vai usá-lo mais, e pode até faltar álcool.

— O Brasil vem trabalhando nos últimos 50 anos no programa de etanol, mas nestes momentos de crise não consegue usar a vantagem competitiva por falta de planejamento do governo — afirma Feldmann.

Dados da Associação Brasileira da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica) mostram que a procura por etanol nos postos aumentou com a alta da gasolina. Em fevereiro, as vendas do etanol hidratado, usado nos veículos, subiram 26,20% em relação a janeiro.

Autor/Veículo: O Globo
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