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ANP livra distribuidoras condenadas de punição máxima por serem 'grandes demais'

A ANP (Agência Nacional de Petróleo) decidiu descumprir uma lei que a obriga a cancelar automaticamente a autorização de funcionamento de empresas do setor que foram condenadas pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) por formação de cartel e outras infrações contra a ordem econômica no mercado de combustíveis.

A medida beneficia as maiores distribuidoras do país —Vibra (BR), Raízen (Shell) e Ipiranga—, que receberam nos últimos anos punições aplicadas pelo órgão de defesa da concorrência.

Em parecer que embasa uma de suas decisões e também em conversas reservadas com integrantes do Cade, a ANP alega que cumprir a lei prejudicaria o abastecimento de postos no país.

Apesar da postura da ANP, as três empresas afirmam que recorreram à Justiça contra as condenações do Cade e conseguiram suspender as decisões. Juntas, elas abastecem cerca de 65% do mercado brasileiro, segundo dados da agência.

A lei que dispõe sobre a fiscalização do abastecimento nacional de combustíveis (9.847/99) determina o cancelamento da autorização das empresas condenadas por cartel ou qualquer infração de ordem econômica reconhecida pelo Cade.

"A penalidade de revogação de autorização para o exercício de atividade será aplicada quando a pessoa jurídica autorizada [...] praticar, no exercício de atividade relacionada ao abastecimento nacional de combustíveis, infração da ordem econômica, reconhecida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade ou por decisão judicial", afirma a lei.

As três maiores distribuidoras já foram condenadas pelo Cade. O caso mais recente —e também o maior deles— foi encerrado em julho e resultou em uma multa conjunta de R$ 105 milhões para Ipiranga e Vibra por formação de cartel na região metropolitana de Belo Horizonte (MG).

As condenações foram notificadas pelo Cade em ofícios à ANP.

Em conversas com representantes do Cade, a agência de petróleo afirma que é inviável retirar do mercado as três maiores distribuidoras e que, de acordo com um parecer jurídico da AGU (Advocacia-Geral da União), seria preciso modular a lei. Para isso, no entanto, teria de enviar um projeto ao Congresso Nacional, o que ainda está sob avaliação.

No Cade, a avaliação de conselheiros também é de que a lei precisa ser revista. As empresas, segundo o conselho, foram punidas na esfera administrativa e retirá-las do mercado seria uma pena excessiva, especialmente quando as condenadas são as três maiores do país.

Ainda segundo a avaliação de integrantes do Cade e da ANP, até mesmo a Petrobras —que detém o monopólio— poderia ser retirada do mercado se fosse condenada por práticas anticompetitivas.

A atuação de cartéis costuma elevar os preços médios de produtos e serviços em até 30%, prejudicando os consumidores.

Durante o governo do ex-presidente Michel Temer, o então ministro Moreira Franco (Secretaria-Geral) pediu uma força-tarefa do Cade e da Polícia Federal para acabar com cartéis de combustível como forma de derrubar preços e impedir a paralisação de caminhoneiros, em 2018.

Os casos envolvendo Ipiranga, Vibra e Raízen já encerraram totalmente sua tramitação no Cade, sem mais possibilidade de recurso administrativo.

A ANP, no entanto, em um dos processos do Cade que resultou na condenação da Raízen a uma multa de R$ 31,7 milhões (em 2015), comunicou ao órgão antitrute que não iria aplicar a punição prevista na lei do setor.

A diretoria informou que decidiu "aprovar a não-revogação automática da empresa Raízen Combustíveis". Essa resposta, no entanto, só chegou ao Cade mais de dois anos após a condenação.

Ao conselho, a ANP comparou a situação das distribuidoras com a dos grandes bancos, considerados "too big to fail" (grandes demais para quebrar, em uma tradução do inglês).

A agência considerou que a Lei do Petróleo define ser atribuição do regulador "garantir o suprimento de derivados de petróleo" em todo o país. Ou seja, para a ANP, existe conflito entre as leis.

Nos outros três processos em que as grandes distribuidoras foram condenadas por cartel e outras infrações à ordem econômica, a ANP vem atuando com lentidão, sem ter marcado posição.

Em processo que resultou na condenação da Ipiranga a uma multa de R$ 8,1 milhões, por exemplo, o Cade comunicou à ANP sobre a conclusão do processo administrativo, em agosto de 2017.

Não houve nenhuma manifestação da agência ao Cade desde então, inclusive quanto a pedido de informações complementares.

No caso concluído mais recentemente, que resultou na aplicação de R$ 105 milhões em multas para a Ipiranga e a BR Distribuidora (atual Vibra), o Cade comunicou à ANP a posição do relator do processo ainda em junho de 2019, quando o julgamento foi realizado.

A agência reguladora respondeu ao Cade dois meses depois, indicando que daria sequência ao caso —apesar da posição contra a revogação no caso da Raízen no ano anterior.

Em ofício enviado ao Cade, a ANP chegou a solicitar uma série de informações complementares, todas elas fornecidas na sequência. No entanto, o processo na ANP, que tramita em sigilo, está paralisado desde junho de 2020 na Superintendência de Distribuição e Logística, que acompanha justamente as distribuidoras de combustíveis.

A postura da ANP em relação aos casos concluídos no Cade contrasta com o espírito de um acordo de cooperação técnica assinado em 2013 entre a agência e o órgão antitruste. O objetivo era justamente o de garantir que informações, inclusive sigilosas, fossem repassadas entre as instituições.

Por meio de sua assessoria, a ANP informou que sofreu um ataque de hackers e que, por isso, não poderia prestar esclarecimentos sobre os casos específicos. A Folha, então, solicitou uma manifestação sobre o suposto conflito entre as leis, mas a agência não respondeu.

O Cade, via assessoria, disse que sua posição sobre os casos consta nos processos que resultaram em condenação. Neles, constam as notificações para a ANP.

Vibra e Ipiranga afirmaram ter recorrido à Justiça contra as condenações do Cade que, segundo as empresas, estariam suspensas.

A Ipiranga reforçou que sua condenação na decisão do Cade não foi caracterizada como cartel. "Na avaliação do órgão regulador, há uma conduta anticoncorrencial de indução ao comportamento uniforme, fato que se julgou procedente através de condutas inadequadas isoladas de dois funcionários da empresa", disse por nota.

A Vibra disse que sua condenação ocorreu por "supostamente ter influenciado 'a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes'". "Os efeitos dessa condenação estão suspensos pelo Judiciário", disse via assessoria.

Procurada, a Raízen não quis se manifestar.

Autor/Veículo: Folha de S.Paulo
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