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'CPMF é como usar um martelo para matar mosca', afirma economista

Pedro Henrique Albuquerque dá aulas de Economia e Finanças na Kedge Business School em Marselha, na França, há dez anos, mas conhece bem a estrutura tributária brasileira, especialmente a extinta CPMF. Ele é autor de um dos principais estudos que apontam distorções provocadas pelo antigo tributo, que vigorou entre 1997 e 2007.

Por isso, diz que o debate sobre a reforma tributária no Brasil parece ter parado no tempo, sem caminhar no sentido do desenvolvimento sustentável, como estão fazendo os países desenvolvidos.

Albuquerque, que trabalhou no Banco Central na gestão de Arminio Fraga, afirma que o Brasil precisa se unir aos esforços internacionais para tributar grandes empresas de tecnologia, mas não da forma como planeja o ministro da Economia, Paulo Guedes, que recusa comparações com a CPMF.

O governo estuda um imposto sobre transações financeiras, nos moldes da antiga CPMF, alegando que alcançará as transações digitais das empresas de tecnologia. O senhor concorda?

Quando falamos de imposto sobre transações digitais, na maior parte dos países, estamos falando de como buscar parte da receita dessas megacompanhias, que são muito ricas e não estão contribuindo para o bem-estar social. Daí passar para a história da CPMF vai muito longe. Quando falamos de CPMF, estamos falando de tudo, de todas as transações, sejam elas digitais ou não. Ela não pode ser chamada de um imposto apenas sobre transações ou comércio digital. Isso é um imposto sobre toda a economia.

Quais os riscos desse imposto?

Se queremos fazer justiça fiscal, vamos chamar as pessoas que têm maiores rendas a contribuir mais. O problema da CPMF é que não há essa relação. Não há como dizer que a pessoa que faz mais transações financeiras é a que tem mais renda. Se tributa o sistema bancário formal, cria-se o que se chama em inglês de shadow banking, um banco subterrâneo, que já existia na época da CPMF quando empresas criavam câmaras de compensação para trocar cheques. O imposto tende a ser desfavorável para a pequena e média empresa. Uma grande monopolista que tem o controle sobre a cadeia produtiva tem uma vantagem com esse imposto que não deveria existir. A CMPF tende a ser um imposto favorável aos negócios concentrados e não aos distribuídos, que queremos por questões sociais, para criar vantagem para o pequeno e médio empresário, para as companhias locais, para a atividade cooperativa. Há um incentivo para haver ainda mais transações informais ou semiformais. O problema do Brasil, nós sabemos de longo tempo, é a dificuldade de fazer aqueles que podem pagar pagarem. Isso não muda.

“'A CPMF não pode ser chamada de um imposto apenas sobre transações ou comércio digital. É um imposto sobre toda a economia'”

Mas o argumento é que o imposto alcançaria a economia informal...

Um imposto como a CPMF é como usar um martelo para matar mosca. Está tributando muito mais os outros e não a economia informal. Vai ser indiretamente tributada, mas não no seu núcleo. Dizer que é para tributar a economia informal sempre foi, para mim, um tanto falacioso.

Algum país adota esse imposto?

Não que eu saiba. Estudo do FMI mostrou que esse é um imposto que tende a aparecer e desaparecer porque normalmente é usado em emergências. O governo que não tem maioria no Congresso costuma usar porque não tem outra opção. Acaba porque a arrecadação frustra ou porque é um imposto que não permite fazer políticas sociais. Tem esse conflito entre o imposto correto e o imposto necessário. O governo brasileiro talvez esteja buscando o imposto necessário por falta de alternativas, mas isso não justifica empobrecer a discussão. A busca da facilidade fica bem longe da qualidade. Nenhum país que eu conheço está discutindo cobrar um imposto se eu pago um cafezinho com cartão.

O imposto digital também está fora do debate no Brasil?

A primeira coisa que o governo brasileiro deveria fazer é se integrar aos grupos de trabalho internacionais. Se o Itamaraty pedisse visto e participações nas discussões, a União Europeia veria com bons olhos porque o Brasil é uma economia grande. Vejo mais integração de países asiáticos como Índia e China.

Por que o Brasil insiste em tributos como a CPMF?

Porque é um imposto fácil, talvez não devesse dizer isso, mas é um imposto preguiçoso, fácil de fazer. Os bancos são bons em controlar as transações financeiras. O sistema bancário consegue fazer isso em dias. É um imposto fácil, comparado com IVA, de valor agregado, que é muito correto do ponto de vista teórico, mas difícil de fazer funcionar, precisa de toda uma estrutura. O problema do Brasil é que a carga tributária é alta para o nível de desenvolvimento. As pessoas têm a preocupação de não aumentar impostos. Mas, infelizmente, é por aí o caminho. Sabemos que certos segmentos da população, certos setores da economia não pagam o que deveriam pagar. É por aí que a discussão deveria passar.

Quais setores ?

Impostos sobre a folha de pagamento não são bons porque penalizam o emprego formal. No Brasil, há os problemas clássicos e os novos. Os clássicos são a distribuição de renda e riqueza muito desigual. Se a pessoa tem um patrimônio extremamente elevado, deveria contribuir muito mais. É uma questão de justiça social básica. Se você se beneficia mais do sistema deveria contribuir mais para o sistema. Não há motivo pelo qual deveria ser uma família a controlar boa parte da propriedade rural de um estado. Isso cria distorções, impede a formação de cooperativas modernas, impede a ascensão social de famílias e cria situações de armadilhas de pobreza no campo. Houve progressos, mas estamos longe de resolver.

“'É como usar um martelo para matar mosca. Está tributando muito mais os outros e não a economia informal'”

E os novos problemas?

Novos impostos, novas alternativas tributárias que estão ligadas aos novos problemas de desenvolvimento sustentável. Há uma tendência (no mundo) de evoluir na direção de maior justiça no sentido de que atividades que são mais destrutivas a longo prazo para a sociedade como um todo devem pagar mais. Atividades poluentes deveriam pagar mais impostos, atividades que não produzem poluição, como energias limpas, não deveriam pagar imposto ou até receber subsídio. O debate no Brasil não evoluiu muito nesse sentido. Vejo as discussões no Congresso e nos jornais, e estão defasadas.

O senhor se refere às discussões sobre a reforma tributária?

A discussão no Brasil passa por simplificação, redução da ineficiência fiscal, mas teria de evoluir para incorporar critérios de desenvolvimento sustentável. A despeito de certos revezes que ocorreram recentemente, a tendência do mundo é prestar atenção a isso, como está acontecendo na Ásia e na Europa em particular. Se o Brasil quiser ficar alinhado a esse movimento, tem que passar a ter essa discussão.

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Nossa reforma tributária corre o risco de ficar velha?

Talvez seja uma oportunidade perdida. Acho que a reforma não está vendo certas dimensões mais modernas dessa problemática. As temáticas me parecem um pouco paradas no tempo. Talvez devesse ter economistas mais jovens participando da discussão (risos). É verdade que ainda há coisas no Brasil a fazer que não fizemos nos anos 1980, mas isso não quer dizer que vamos fazer agora como se fosse nos anos 1980.

Autor/Veículo: O Globo
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