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Governo Lula: como o petróleo pode ser 'calcanhar de Aquiles' da política ambiental

Na próxima semana, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deverá desembarcar no balneário egípcio de Sharm El-Sheik para participar, como convidado, da Conferência das Nações Unidas para o Clima (COP27). O evento reúne chefes de Estado de dezenas de países para discutir os rumos do combate à emergência climática que afeta o planeta.

Parte da comunidade internacional aguarda a chegada de Lula ao evento com a expectativa de que ele possa anunciar quem irá ocupar o ministério do Meio Ambiente. Uma das principais cotadas é a ex-ministra da pasta e deputada federal eleita Marina Silva (Rede-SP), que já está no Egito.

Também há a expectativa de que o presidente eleito anuncie quais serão as linhas mestras de sua política ambiental para os próximos quatro anos.

Mas apesar de sua vitória ter sido comemorada por ambientalistas e líderes preocupados com o futuro da Amazônia, especialistas e políticos ouvidos pela BBC News Brasil apontam que as diretrizes apontadas pelo PT durante a corrida eleitoral contém uma contradição que não pode ser ignorada.

De um lado, o partido do presidente se compromete com o combate ao desmatamento ilegal na Amazônia. Por outro, porém, continua apostando pesado na exploração petrolífera como fonte de geração de riqueza e como motor do desenvolvimento nacional.

"Neste momento, podemos dizer, sim, que esta é uma contradição", disse o deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), coordenador da campanha presidencial para temas ambientais.

Contraste de discursos

A comemoração de ambientalistas pela vitória de Lula nas eleições sobre o presidente Jair Bolsonaro (PL) se deveu, em parte, pela condução da política ambiental do atual mandatário.

Durante a gestão de Bolsonaro, o desmatamento na Amazônia aumentou de 10,1 mil quilômetros quadrados em 2019 para 13 mil quilômetros quadrados em 2021, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Em meio ao aumento no número de queimadas na Amazônia, Bolsonaro chegou a responsabilizar índios e ribeirinhos pelos incêndios — que chamaram atenção da comunidade internacional.

Além disso, o governo Bolsonaro defendeu a regulamentação da mineração em terras indígenas e prometeu acabar com a chamada "indústria da multa", termo usado pelo presidente para designar a atuação de órgãos ambientais contra infratores.

Na contramão, Lula é conhecido internacionalmente por ter conseguido reduzir em 72,3% a taxa anual de desmatamento. Em 2003, ano em que assumiu, o desmatamento na Amazônia foi de 25,3 mil quilômetros quadrados. Em 2010, ano em que deixou o governo, a taxa foi de 7 mil quilômetros quadrados.

Ainda durante seu governo, Lula criou o Fundo Amazônia, que recebeu doações de países como Alemanha e Noruega para financiar ações de preservação da floresta amazônica.

Durante a campanha eleitoral deste ano, Lula prometeu retomar a política ambiental pela qual ficou conhecido entre 2003 e 2010, o que animou parte da comunidade internacional e de ambientalistas. Seu principal foco foi a promessa de que irá combater o desmatamento ilegal na Amazônia e a atividade dos garimpos ilegais.

A animação foi tamanha que logo após a sua vitória, o governo da Noruega anunciou que retomaria sua participação no Fundo Amazônia, paralisada desde o início da gestão do presidente Jair Bolsonaro e do ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

Logo em seguida, o presidente do Egito, Abdul Fatah Khalil Al-Sisi, convidou Lula para participar da COP 27. Lula deve chegar ao evento na próxima quarta-feira (16/10).

Contradição: Amazônia e petróleo

O entusiasmo em relação ao retorno de Lula ao poder, porém, não esconde a preocupação de um grupo significativo de ambientalistas com a contradição da política ambiental desenhada pelo PT e divulgada durante a campanha eleitoral.

No documento "Diretrizes para o programa de reconstrução e transformação do Brasil" registrado pelo PT junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o partido elenca algumas das suas prioridades para os próximos quatro anos.

Nele, a chapa se compromete a promover um modelo de desenvolvimento ambiental e economicamente sustentável e a enfrentar as mudanças climáticas.

"Temos compromisso com a sustentabilidade social, ambiental, econômica e com o enfrentamento das mudanças climáticas. Isso requer cuidar de nossas riquezas naturais, produzir e consumir de forma sustentável e mudar o padrão de produção e consumo de energia no país, participando do esforço mundial para combater a crise climática", diz um trecho do documento.

Em outro trecho, o partido promete combater de forma "implacável" o desmatamento ilegal.

"Combateremos o crime ambiental promovido por milícias, grileiros, madeireiros e qualquer organização econômica que aja ao arrepio da lei. Nosso compromisso é com o combate implacável ao desmatamento ilegal e promoção do desmatamento líquido zero, ou seja, com recomposição de áreas degradadas e reflorestamento dos biomas", diz outro trecho do documento.

O documento também menciona a necessidade de conduzir o Brasil para uma transição energética e ecológica e fala em diversificar a matriz energética do país com fontes renováveis, mas também fala em aumentar a capacidade de produção de derivados do petróleo no Brasil.

"É necessário expandir a capacidade de produção de derivados no Brasil, aproveitando-se da grande riqueza do pré-sal, com preços que levem em conta os custos de produção no Brasil", diz um trecho das diretrizes.

Para o secretário-executivo da organização não-governamental Observatório do Clima, Márcio Astrini, o foco na Amazônia e a aposta em combustíveis fósseis é a principal contradição das diretrizes do que deverá ser a política ambiental do novo governo.

Ele avalia que esse paradoxo não está em evidência por conta do legado deixado pela política ambiental do atual governo, especialmente na Amazônia.

"Essa contradição existe e não é tão debatida porque a gente vem de um cenário de desmatamento e falta de governança na Amazônia que é um escândalo e que dominou o noticiário. Mas essa aposta em combustíveis fósseis é um problema que o novo governo Lula vai ter que resolver", afirmou Astrini.

Astrini diz que o tema é sensível dentro do grupo político que apoiou a candidatura de Lula por conta da ligação histórica entre o presidente eleito e setores como os trabalhadores da indústria do petróleo.

"Os petroleiros fazem parte da base social de apoio a Lula. É uma base legítima e isso torna o debate em torno do assunto bastante sensível", explicou.

A assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Livi Gerbase, também avalia que a aposta em combustíveis fósseis feita pelo novo governo é uma contradição quando comparada com a postura prometida em torno da Amazônia.

"É muito difícil que o Brasil se posicione, de fato, como líder na área climática, se mantiver a aposta em combustíveis fósseis. Hoje, o Brasil é o nono maior produtor de petróleo do mundo e as estimativas são de que a produção aumente e o Brasil chegue ao quarto lugar nesse ranking", disse a especialista.

Livi Gerbase afirma que o governo precisa apresentar propostas concretas para avançar na transição em matéria de energia uma vez que, nos últimos anos, a matriz elétrica do país ficou mais "suja", com aumento da participação de fontes derivadas de combustíveis fósseis.

Dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) apontam que, em 2010, 11,7% da energia elétrica produzida no Brasil vinha de combustíveis fósseis (carvão mineral, gás natural e petróleo ou derivados). Em 2021, esse percentual saltou para 19,7%.

Foco no combate ao desmatamento

Apesar de reconhecer a contradição da política ambiental proposta pelo novo governo, Nilto Tatto diz que, neste momento, a prioridade do governo está focada em atacar as principais fontes de emissões dos gases do efeito estufa do país.

Segundo o relatório do Observatório do Clima divulgado em 2021, 73% das emissões brasileiras são derivadas da agropecuária e da mudança no uso da terra e floresta, item que compreende o desmatamento.

Tatto disse que o foco na Amazônia se deve, em parte, ao fato de que o Brasil não teria condições de abdicar do petróleo.

"Precisamos levar em consideração que a maior parte da contribuição do Brasil às emissões está relacionada ao uso da terra, desmatamento e agropecuária [...] Por isso o desmatamento é o foco. O Brasil não tem condições de abdicar do uso ou da extração de petróleo", disse o parlamentar, que participa da COP 27.

Para o parlamentar Airton Faleiro (PT-PA), que também colaborou com o partido durante a campanha presidencial, a manutenção da aposta em combustíveis fósseis pelo governo se dá pela conjugação de três fatores: divergências internas, falta de compreensão sobre a emergência da crise climática e restrições impostas pela legislação.

"O governo Lula é um governo em disputa. Ele é formado por uma grande coalizão com diferentes entendimentos sobre o tema. Além disso, não existe um convencimento na coalizão sobre evoluirmos em novas fontes. E finalmente, temos a legislação e limitações orçamentárias para investir em novas fontes", disse o parlamentar.

Dever de casa

Nilto Tatto reconhece que a aposta em petróleo é uma contradição na política ambiental que está sendo desenhada pela equipe do novo governo. Ele afirma, no entanto, que o principal vilão climático do Brasil são as emissões de gases do efeito estufa derivadas do uso do solo, especialmente o desmatamento.

"Podemos dizer que, neste momento, há, sim, uma contradição. Mas precisamos levar em consideração que a maior parte da contribuição do Brasil às emissões (de gases do efeito estufa) está relacionada ao uso da terra, ao desmatamento e agropecuária", afirmou o deputado.

Relatório divulgado pelo Observatório do Clima em 2021 estima que, em 2020, 73% das emissões de gases do efeito estufa no Brasil eram derivadas da mudança no uso da terra (46%) e da agropecuária (27%).

No item "mudanças no uso da terra", 90% do total foi causado pelo desmatamento. O setor de energia, segundo o relatório, é responsável por 18% das emissões.

O deputado Airton Faleiro disse acreditar, porém, que o novo governo Lula será cobrado, inicialmente, pela redução do desmatamento na Amazônia.

"Acho que o Brasil vai ser mais cobrado pela redução das queimadas e do desmatamento na Amazônia do que pela nossa geração de energia fóssil", avaliou o parlamentar.

Faleiro avalia, no entanto, que se o Brasil não caminhar rapidamente rumo a uma transição energética, o país poderá se prejudicar.

"Se o Brasil cuidar bem das queimadas, do desmatamento e impedir os ataques às terras indígenas, a imagem do país ficará boa interna e externamente. Mas se o Brasil não acelerar esse processo de transição rumo a novas fontes de geração de energia, aí poderemos ser condenados por não termos evoluído em nossas ambições", disse o parlamentar.

Petrobras na mira

No papel, as diretrizes para o plano de governo de Lula mencionam a necessidade de transformar a Petrobras em uma empresa de energia, o que englobaria a produção de energia a partir de diversas fontes e não apenas a partir da exploração de petróleo. Ao mesmo tempo, o documento menciona a necessidade de expandir a capacidade de refino do óleo cru extraído pela companhia.

Os planos delineados pelo partido de ampliar o portfólio energético da Petrobras, porém, contrastam com a realidade da companhia neste momento.

De acordo com o planejamento quinquenal divulgado pela empresa em novembro de 2021 e referente ao período de 2022 a 2026, não há previsão de investimentos da companhia em fontes de energia como eólica ou solar, cujas participações na matriz energética brasileira vêm crescendo ano após ano.

Dos R$ 68 bilhões previstos em investimentos até 2026, 84% (R$ 57,3 bilhões) serão destinados à exploração de petróleo. Ainda de acordo com o relatório, somente 4,1% serão destinados a projetos para reduzir as emissões de carbono da empresa, como a produção de diesel renovável.

À BBC News Brasil, o diretor de relacionamento institucional e sustentabilidade da Petrobras, Rafael Chaves Santos, admite que a Petrobras não tem um plano estabelecido de energia renovável.

"A gente não tem plano de investimento em energia renovável. Hoje a Petrobras não tem (planos de investimento em energia) solar, eólica. Isso aí está claro desde a divulgação do plano (2022-2026). Hoje, a gente não investe em energia solar e eólica. Hoje a gente investe em petróleo, descarbonização e soluções com base na natureza e floresta", disse o diretor.

Santos disse que nos cenários com os quais a Petrobras trabalha, o petróleo continuará a ser uma commodity importante até 2050. Por isso, ele diz, a companhia deve acelerar a extração do petróleo do pré-sal e gerar riqueza.

"Se você pegar o cenário mais agressivo de transição energética, você vai ter milhões de barris de petróleo sendo consumidos. Isso não é uma dependência, é uma oportunidade que a gente tem de transformar os recursos brasileiros em riqueza. Por isso que a gente fala muito da pressa no pré-sal. A gente tem que tirar o barril de petróleo e vender [...] porque se a gente não tirar e não vender, ele não gera emprego, renda e imposto", disse Santos.

Livi Gerbase, do Inesc, diz que o problema da postura adotada pela companhia nos últimos anos "suja" não apenas a matriz energética do país, como a de outros países, na medida em que parte do petróleo produzido pela estatal é exportado.

Segundo ela, o momento não seria de adotar uma política de interrupção da exploração de petróleo ou mesmo de não abrir novos poços, mas de ter uma estratégia definida para o futuro baseado em energias renováveis.

"Não é uma questão de abandonar o petróleo ou de (ter) nenhum poço a mais. É mais uma questão de entender que, podemos, sim, produzir petróleo, mas que devemos depender cada vez menos das rendas petrolíferas e mais das rendas oriundas de fontes renováveis", disse.

(BBC News)

Autor/Veículo: G1
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