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?O governo tem sido incapaz de fazer planos?

A recessão causada pela pandemia do novo coronavírus trouxe junto um momento “benigno” em relação aos rombos fiscais de governos mundo afora, segundo o economista José Alexandre Scheinkman, professor da Universidade Columbia, em Nova York. Para conter a pandemia, os países foram obrigados a gastar mais e, apesar disso, os investidores não estão cobrando taxas de juros maiores na rolagem dos títulos públicos. Há anos em grave desequilíbrio nas contas públicas, a economia do Brasil tem, assim, um “certo tempo” para “respirar”, enquanto o País enfrenta a covid-19 e, ao mesmo tempo, se prepara para tentar equacionar o problema fiscal no futuro, disse Scheinkman – que participa de série de entrevistas do Estadão que vai discutir saídas para a atual crise fiscal.

O brasileiro, radicado nos EUA desde os anos 1970, não vê outra forma de enfrentar o problema: o Executivo federal precisa apresentar um bom plano sobre quanto o Estado vai arrecadar da economia, como vai arrecadar e o que vai fazer com esse dinheiro, eliminando despesas pouco eficazes. Como não vê no governo Jair Bolsonaro a capacidade de levar um plano do tipo adiante, Scheinkman acha que uma solução deverá ficar só para depois das eleições presidenciais de 2022.

• O governo federal ampliou seus gastos para fazer frente à crise da pandemia. Há limite para isso?

É complicado saber, porque não sabemos o que vem pela frente em termos de covid-19. O que está sendo experimentado na Europa e nos EUA é uma segunda onda. Não sei qual a perspectiva para o Brasil. Tanto no inverno americano quanto no verão brasileiro muita gente faz atividades dentro de casa, com aquecimento ou ar-condicionado. Se houver aumento (de casos de covid-19), o governo vai ter de fazer coisas. Agora, eventualmente, isso chega a um limite.

• Os gastos poderão ficar insustentáveis?

O que mais me preocupa agora são duas coisas. Uma é a total inabilidade do governo para, pelo menos, propor um caminho para o ajuste fiscal no futuro. Esse governo tem sido incapaz de fazer planos para quase tudo. A outra é que, embora o problema do ajuste fiscal no Brasil obviamente seja de nível, mais importante ainda é que gastamos muito mal. Um país que tem o nível de renda como o do Brasil e arrecada a porcentagem do PIB (Produto Interno Bruto) que o Brasil arrecada deveria ter um sistema de esgoto quase universal. Países mais pobres e que arrecadam menos do que o Brasil conseguem oferecer para uma grande fração de suas populações um sistema de esgoto, mas nós não conseguimos. O nosso problema fiscal não é só de nível, é um problema de alocação.

• Por que o Brasil gasta mal?

Os programas no Brasil, muitas vezes, existem há muitos anos e ninguém nunca passou tempo avaliando se fazem aquilo que foram desenhados para fazer. Isso ainda é piorado pela nossa instabilidade de regras. As regras no Brasil mudam todo dia. O Supremo (Tribunal Federal) toma uma decisão sobre um caso, no ano seguinte toma uma decisão sobre o mesmo problema completamente contrária, aí um juiz dá uma decisão contrária à segunda, aí vem uma nova decisão do Congresso. É absurdo viver num país em que mesmo a Corte Suprema muda de posição a todo tempo.

• A situação do Brasil é pior do que em outros países?

Nosso problema de alocação e execução é pior do que em outros países. Não é que nos outros países seja uma maravilha, mas há países que têm sistemas de alocação e execução muito melhores porque fazem avaliação constante, como Nova Zelândia e Austrália. Temos um sistema de impostos que é muito ruim, e a principal proposta do governo, hoje em dia, que é a volta da CPMF (o tributo sobre transações digitais, uma das propostas da equipe econômica), vai só piorar o nosso problema fiscal. Um investidor de fora olha para isso e acha que o País não vai melhorar.

• O teto de gastos melhorou o problema fiscal?

Vejo o teto de gasto como um último recurso. No sentido que ele dá pelo menos um limite, com algumas exceções, como durante a pandemia, quando essas exceções foram importantes e desejáveis. O teto nos força, se for mantido, a fazer as escolhas que precisam ser feitas. É um recurso que vale a pena ter, mas o mais importante é termos uma discussão séria sobre quanto o Estado vai arrecadar da economia brasileira e o que ele vai fazer com esse dinheiro, e como ele vai arrecadar. Nos falta uma discussão desse tipo.

• Se o governo mudar o teto, a economia pode entrar em nova crise?

Não sei o que é mexer no teto. O teto é flexível. Já mexemos no teto no que podemos chamar de primeira crise da pandemia. Não acho que o teto restringe os gastos quando é preciso gastar, quando é realmente uma questão importante. Portanto, acho que deveria manter o teto. Se tiver uma segunda onda (de casos da covid-19), o governo vai ter de fazer como fez na primeira, fazer uma exceção, mas manter o teto de gastos.

• O diagnóstico de que o governo gasta mal parece claro, mas o que é preciso fazer para melhorar a qualidade dos gastos?

O Executivo tem de chegar com a proposta. É muito difícil essa proposta nascer no Congresso, que é um grupo heterogêneo. Os progressos que fizemos, tanto na área fiscal quanto em outras, foram propostos pelo Executivo. O Plano Real foi proposto pelo Executivo. A criação de programas de transferência direta também foi pelo Executivo, assim como a unificação e a ampliação desses programas. E são programas que deram bastante certo. Obviamente, há um papel importante do Legislativo para discutir essas propostas. E do Judiciário, para julgar se os programas estão dentro da lei. Mas, historicamente, o Legislativo não desenha programas desses do zero. Nos EUA, é a mesma coisa.

• Como ir além de propostas que passem por tirar gastos focados nos “pobres” para dar para os “paupérrimos”?

Os programas que dão para os paupérrimos são muito baratos. Agora, quando se olha os perdões tributários, são vários pontos porcentuais do PIB (em gastos). O problema não é tirar dos pobres para dar para os paupérrimos. É possível dar para os paupérrimos e economizar em várias outras áreas em que o governo gasta dinheiro sem nenhuma efetividade. A Zona Franca de Manaus custa dinheiro e não tem nenhum impacto no bem-estar dos amazonenses, mas sim no bem-estar de alguns empresários que estão na área. O Bolsa Família provou que se pode melhorar bastante a vida dos paupérrimos a um custo relativamente baixo. É preciso identificar o que o governo está fazendo e não tem retorno. No nível estadual, isso é pior ainda.

• A reforma tributária deveria ser feita em conjunto do plano para equilibrar as contas públicas?

Sim, a reforma tributária deveria fazer parte dessa discussão. A reforma tributária vai aumentar a eficiência da economia. E se precisarmos aumentar impostos, vai ser muito melhor fazer isso de uma maneira que não danifique a economia tanto quanto o presente sistema danifica. Tem várias coisas que dá para fazer, não só na renda dos muitos ricos, sobre a qual o Brasil poderia cobrar mais, mas também em termos de equidade horizontal. No Brasil, um economista que trabalha para uma firma paga muito mais impostos do que se o mesmo economista vendesse serviços para essa firma. Além disso, temos uma grande diferença de impostos sobre serviços e bens, mas a definição de serviços e bens hoje em dia é muito fluida.

• Sem um plano para melhorar os gastos, o Brasil pode entrar em nova crise?

Este é o momento certo de o governo agir, porque o momento, no mundo inteiro, é muito benigno em termos de déficit fiscal e do tratamento que os investidores estão dando (ao problema), em termos das taxas de juros que estão demandando dos governos. A taxa real, ou seja, a diferença entre a taxa e a inflação, é negativa em praticamente todos os países desenvolvidos e muito pequena nos países em desenvolvimento. Então, temos certo tempo para respirar, exatamente para fazer o que é necessário para combater a covid-19, mas esses são realmente os momentos em que se deve preparar para o futuro. Não vai ficar sempre assim. Se preparar para o futuro significa criar uma estrutura que permita a melhoria desse problema fiscal no futuro, que desenhe um caminho para a melhoria dessa questão fiscal no futuro. Quando esse comportamento benigno passar, é sempre mais difícil. Teremos de tomar medidas que tenham impactos mais rapidamente. O mundo não vai mudar por causa do que o Brasil fizer. O Brasil está inserido na economia mundial. Quando ficar mais claro que os EUA recuperaram o crescimento, as taxas de juros em dólar vão começar a aumentar. Quando isso acontecer, o espaço para o Brasil pagar uma taxa de juros reduzida desaparece.

• O que são medidas de impacto mais rápido?

É o que temos feito, cortar investimentos. Ou algo pior, começar a adicionar controles na economia. Se a taxa de juros estiver muito alta lá fora e o dinheiro estiver saindo muito rapidamente, vamos controlar a saída de capital. Aí começa a entrar num processo de medidas salvacionistas que, por si só, têm um efeito negativo na economia.

• Há risco de este momento benigno terminar com uma crise global por causa dos déficits fiscais?

Não vejo como um problema de curto prazo. Obviamente, tudo depende. Não faço previsões, mas quando olho o que os mercados estão fazendo, quando se olha para as taxas de dez anos nos EUA, na Alemanha, na Espanha ou na Itália, não é uma coisa que vai chegar amanhã.

• Está otimista numa solução para o desequilíbrio fiscal no Brasil?

Infelizmente, neste governo, vai ser difícil. Como falei, é preciso uma proposta. E a proposta tem de vir do Executivo. Não vejo competência e organização para gerar uma boa proposta. Seria muito bom se eu estivesse errado, mas, no fundo, acho que é algo que vai ficar para a próxima eleição.

Autor/Veículo: O Estado de S.Paulo
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