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País relaxa nos cuidados e chega a 200 mil mortes por covid

O Brasil superou ontem a marca de 200 mil mortos pela covid-19, com uma curva ascendente de casos de infecção e óbitos e em meio ao abandono dos cuidados por parte da população e às aglomerações do fim de ano. Especialistas

veem um cenário sombrio nas próximas semanas, com a possibilidade de falta de leitos de UTI, sobrecarga das unidades de saúde e dos cemitérios. Quando o País atingiu 100 mil mortos, em agosto, a média móvel de vítimas indicava um início de queda e melhoria da situação. Mas logo voltou a subir. “Parecia que estávamos em declínio mesmo, mas não chegamos a zerar. Tivemos o impacto das eleições municipais. Os números de internações estavam claramente subindo, mas ninguém queria adotar medidas mais restritivas e impopulares. Aí veio o fim de ano. A expectativa é péssima”, diz o epidemiologista Paulo Lotufo, da USP.

O Brasil superou ontem a marca de 200 mil mortos pela covid-19, quando muitos já temem que possa ser o pior momento da pandemia no País. A curva de casos e mortes voltou a ser ascendente. Ao mesmo tempo em que parte da população abandonou os cuidados e se aglomerou nas festas de fim de ano, novas variantes do vírus circulam e ainda não há clareza de quando começa a vacinação.

Em quase dez meses desde que ocorreu a primeira morte pela doença, o País perdeu o equivalente às populações da cidade de Araçatuba (SP) ou de Angra dos Reis (RJ). Até ontem, foram registradas 200.163 mortes, conforme levantamento feito pelo consórcio de imprensa.

E o cenário projetado para as próximas semanas é sombrio, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão. Quando o País atingiu 100 mil mortos, em agosto, a média móvel de vítimas indicava lentamente um início de queda e parecia que a situação começaria a melhorar. Mas ao contrário da Europa, que teve claramente uma primeira e uma segunda onda, no Brasil o número de novas infecções e óbitos nunca arrefeceu.

A média móvel de mortes baixou da casa de mil, em meados de agosto, para pouco mais de 300 na primeira dezena de novembro, mas logo depois voltou a subir. O epidemiologista Paulo Lotufo, da USP, compara como se fosse um avião arremetendo ao tentar pousar.

“Parecia que estávamos em declínio mesmo, mas não chegamos a zerar. Tivemos o impacto das eleições municipais. Os números de internações estavam claramente subindo, mas ninguém queria adotar medidas mais restritivas e impopulares. Aí veio o fim de ano. Não está todo mundo agindo como vimos nas fotos de praias e festas, mas aumentou o desrespeito. Vi casos de irresponsabilidade total, e vamos

ver o resultado disso agora. A expectativa é péssima”, alerta.

Para Deisy Ventura, professora de Ética da Faculdade de Saúde Pública da USP, a posição do governo federal, que desde o início deixou a pandemia correr solta no País, agora parece ter um contrapeso menor dos governos locais e de parte da população, aumentando o risco.

“O governo federal sempre atuou para que a doença seguisse seu ritmo natural, sem construir obstáculos, com a ideia de que quanto mais rapidamente se disseminasse, mais rapidamente passaria, o que é absurdo por todos os aspectos”, argumenta.“Mas havia uma certeza de que os Estados fariam tudo para evitar o colapso do sistema de saúde. Foi o modelo de 2020.

Em 2021, me parece que esses freios podem não funcionar.”

No fim de dezembro, o Amazonas decidiu fechar o comércio, mas recuou após protestos. O Estado só adotou as restrições esta semana, por ordem da Justiça, para conter a alta de mortes – em Manaus o número de sepultamentos saltou 193% no último mês. Durante as festas de fim de ano, o governo paulista determinou que as cidades mantivessem só atividades essenciais, como farmácias e mercados, mas parte das cidades decidiu não cumprir a medida.

O que se viu foram praias e comércio lotados e ausência do uso de máscaras. “Vejo a população respondendo diretamente ao estímulo dado pelo governo federal quando ataca as medidas de contenção do vírus”, opina Deisy, antes de fazer uma previsão dramática para as próximas semanas: “O ano novo pode ser o pior possível. Temo que cenas que não chegamos a ver em 2020, ou vimos pouco no Brasil, se tornem comuns. Vamos ter pessoas morrendo na rua, caminhões de cadáveres, cemitérios sobrecarregados e devemos ter a tão temida sobrecarga das unidades de saúde e de leitos de UTIs. E vamos ter, com mais intensidade, a perda de pessoas próximas”.

O temor é compartilhado pela infectologista Raquel Stucchi, professora do Departamento de Clínica Médica da Unicamp. “Os números de casos e de mortes estão avançando em velocidade muito rápida e não se vislumbra mudança, as coisas vão piorar”, diz.

“Começamos errado e andamos no caminho do erro. O que faltou no nosso País desde o início foi ter uma voz única que entendesse e aceitasse o que a ciência mostrou e conduzisse o País à luz da ciência. Como não tivemos isso, vimos o uso incorreto, ou não frequente ou não exigido em muitos locais da máscara facial. Tivemos até incitação à aglomeração. Mais recentemente durante as campanhas eleitorais e as que se formaram nas festas de fim de ano”, lamenta a pesquisadora.

Bala de prata.

A urgente vacinação de toda a população é vista como a única estratégia que pode começar a mudar esse cenário. Mas tampouco é uma bala de prata que vai tirar o País da pandemia de uma hora para outra, porque ainda vai levar um tempo para atingir a maioria. Enquanto isso, medidas de prevenção e de higiene precisam ser mantidas.

“Mesmo que iniciemos a campanha de vacinação, precisamos continuar alertando a população de que ainda não sabemos se a vacina nos impede de transmitir o vírus e por quanto tempo ficaremos protegidos com a vacina”, afirma Raquel. “Mesmo vacinados, temos de continuar usando máscara de forma correta sempre que sairmos de casa e evitarmos aglomerações até que tenhamos a maior parte da população vacinada”, complementa.

O atraso nas compras de vacina, insumos e no registro dos produtos, além da falta de uma coordenação nacional da logística, porém, preocupam os especialistas. “Todo esse atraso é injustificável. Com isso, governos e municípios tentam se organizar. Mas passar por cima do Plano Nacional de Imunização (PNI, do Ministério da Saúde) não é solução. Só São Paulo vacinar os paulistas, ou o Piauí se articular para também comprar a vacina não configura um programa nacional”, afirma a médica epidemiologista Maria Rita Donalísio, da Unicamp.

“O que a gente precisa, o mais breve possível, é ter cobertura ampla da população. E para isso precisamos de uma coordenação nacional de logística”, complementa. A médica lembra também que o tão falado conceito de imunidade de rebanho só é construído em cima da vacinação ampla. Se houver aglomerados de gente não vacinada, o vírus terá uma circulação maior entre eles, o que pode promover mais mutações.

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) chegou a sinalizar que tenta negociar diretamente com a farmacêutica americana Pfizer, diante da falta de solução por parte do governo

federal. Mas em entrevista ao Estadão, Carlos Lula, presidente do Conass, reafirmou a importância do PNI. A gestão Bolsonaro assinou um memorando para adquirir 70 milhões de doses da Pfizer em 2021, mas não concluiu o negócio. Ontem, após dados de divulgação da eficácia da aposta paulista, a Coronavac, o Ministério da Saúde anunciou que vai comprar 100 milhões de doses do imunizante.

Em nota sobre a marca de 200 mil mortes, o Ministério da Saúde, “em nome do presidente e de todo o governo federal”, disse se solidarizar “com cada família que perdeu entes queridos”. O posicionamento destoa do comportamento do presidente, que várias vezes minimizou o impacto da pandemia.

Autor/Veículo: O Estado de S.Paulo
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